quinta-feira, 3 de junho de 2010

Memória de João Aguiar

(Quando um escritor parte, a sua obra, as suas ideias, a sua morada eterna são as suas palavras. João Aguiar deixou um discurso narrativo muito imaginativo nas formas e muito ligado à memória histórica. Nele transpareceu sempre uma imagem de príncipe das letras e o seu sucesso como recurso nas aulas de História foi sempre a confirmação das suas qualidades, junto dos adolescentes que mergulhavam no imaginário da Portugalidade que ainda se espera audaciosa. Um excerto, de um dos seus livros, A Catedral Verde).

«Ainda não logrei definir com exactidão o que torna este lugar tão especial. Talvez a disposição das árvores, o modo como as suas cores se misturam sob a luz do Sol, talvez o jogo de sombras, talvez a folhagem – ou, neste momento, os ramos desnudados -, talvez o silêncio, porque é raro ouvir aqui outro som que não seja o das próprias árvores tocadas pelo vento.

Não sei. Se acreditar nos efeitos do geomagnetismo... não, nada de explicações científicas.
Lembro-me da primeira vez que aqui vim. Seguia de carro pela estrada, avistei o cruzeiro, que despertou a minha atenção – nesse tempo eu era um recém-chegado a Vale de Monges. Reduzi a velocidade, acabei por parar, o carro ficou estacionado mais ou menos no sítio onde hoje está.

Voltei a olhar para o cruzeiro, que se ergue bizarramente, não à beira da estrada, mas no meio de um terreno coberto de mato rasteiro. E avistei, à distância, em pano de fundo, a mancha verde. Saí do carro sempre a olhar para ela, atravessei a estrada sem deixar de a olhar e caminhei até ao ponto exacto onde me encontro agora. Vim puxado, ou empurrado, por uma força que não sabia se me era exterior ou se era um impulso da minha fantasia que eu inconscientemente vestia com as roupagens da atracção magnética.

Há aqui, pensei então, uma configuração especial que evoca a entrada de um templo: uma espécie de propileu. Mas esta configuração, pensei ainda, não é, ou não é exclusivamente, física. A evocação não está na forma como as árvores se encontram dispostas nem nos contornos e acidentes do terreno. Não é a imagem concreta das coisas, é a imagem que as coisas desenham dentro de mim.

Hoje, após tantas visitas solitárias a este lugar, hoje penso o mesmo. Talvez por vergonha, não mais voltei a fazer o que então fiz. Ajoelhei-me primeiro, depois prostrei-me de olhos fechados, as mãos coladas à terra, e rezei – digo rezei porque todo o discurso dirigido a Deus, ainda que o nome não seja pronunciado, deve ser considerado uma oração.

Não voltei a fazê-lo nem o poderia fazer neste momento sem, prosaicamente, ficar encharcado. Isso é pouco importante, porém… O lugar conserva o mesmo encanto, o silêncio feito de murmúrios é o mesmo, o mesmo é o verde luminoso e o movimento vagaroso, solene, da ramaria.»

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