«Um Reino Maravilhoso»
«Vou falar-lhes de um Reino Maravilhoso. Embora muitas pessoas digam que não, sempre houve e haverá reinos maravilhosos neste mundo. O que é preciso para os ver, é que os olhos não percam a virgindade original diante da realidade, e o coração, depois, não hesite. (...)
Começa logo porque fica no cimo de Portugal, como os ninhos ficam no cimo das árvores para que a distância os torne mais impossíveis e apetecidos.
E quem namora ninhos cá de baixo, se realmente é rapaz e não tem medo das alturas, depois de trepar e atingir a crista do sonho, contempla a própria bem-aventurença. (...)
A gente entra e já está no Reino do Maravilhoso. A autoridade emana da força interior que cada qual traz do berço. Dum berço que oficialmente vai de Vila Real a Chaves, de Chaves a Bragança, de Bragança a Miranda, de Miranda a Régua. Um mundo! Um nunca acabar de terra grossa, fragosa, bravia, que tanto se levanta a pino, num ímpeto de subir ao céu, como se afunda nuns abismos de angústia (...) Léguas e léguas de chão raivoso, contorcido, queimado por um solo de fogo ou por um frio de neve.
Serras sobrepostas a serras. Montanhas paralelas a montanhas. Nos intervalos, apertados entre rios de água cristalina, cantantes a matar a sede de tanta angústia. E de quando em quando, óasis de inquietação (...).»
in Miguel Torga, Um Reino Maravilhoso