terça-feira, 9 de março de 2010

Concurso Nacional de Leitura

As eliminatórias distritais do Concurso Nacional de Leitura decorrem para o Distrito de Santarém no próximo dia onze de Março. As obras que serão alvo das questões a colocar aos alunos são O Diário de Anne Frank e Os Bichos de Miguel Torga. Duas obras que nos transmitem valores ligados à liberdade humana, onde cada homem, mulher, criança procurou encontrar, lutar, resistir por uma dimensão digna da vida.

«-Deus nos dê muitos bons dias!
Quam passava até mudava de cor. Fazia-se-lhe a alma pequena só de ouvir em tal ermo uma resposta assim. É que metia medo!
Felizmente que não se tratava de ladrão. Ramiro, depois daquela salvação dada por entre os dentes, deixava-se ficar quieto, bambo, apoiado na foice roçadoira, com os olhos baços parados sobre a brancura do rebanho. Ramiro era pastor. (...)
A alma enchera-se-lhe de silêncio em vinte anos de Marão. Naquela grande aridez, só a vida que pulsava sem ruído conseguia triunfar. A chamiça, a carqueja, o tojo molar, as lagartixas (...) cresciam no mesmo cauteloso mutismo. No Março, a torga floria. Mas não chegava esse alarido de cor para acordar as fragas. E a lição que Ramiro recebia diariamente era a de uma irremediável afonia cósmica, de vez em quando quebrada pelo balido monossilábico dum cordeiro que se ficava esquecido a olhar um seixo, ou pelos uivos do Rilha que, pressuroso, dava sinais de lobo.»


«Querida Kitty: (...)
Vejo-nos aos oito, aqui no anexo, como se fôssemos um pedaço de céu azul rodeado por ameaçadoras nuvens negras. O local perfeitamente circular onde nos encontramos ainda é seguro, mas as nuvens estão a avançar sobre nós, e o anel que nos separa do perigo que se aproxima é cada vez mais estreito. Estamos rodeados por escuridão e perigo e, na nossa busca desesperada de uma saída, vamos constantemente de encontro uns aos outros. Olhamos para a guerra por baixo de nós e para a paz e beleza por cima. Entretanto, fomos isolados pela massa escura de nuvens e não podemos subir nem descer. Esta ergue-se à nossa frente como uma parede impenetrável, tentando esmagar-nos, mas ainda sem o conseguir. Posso apenas gritar e implorar:
- Oh, anel, anel, abre-te e deixa-nos sair!

Tua, Anne» (1)

(1) Adaptação do original num Álbum para Jovens, da autoria de Josephine Poole e Ilustrações de Angela Barrett)

Memória de Ruy Cinatti


(Lembramos nos noventa e cinco do nascimento de Ruy Cinatti (feitos ontem) um poeta que trouxe as questões antropológicas ao quotidiano que o Portugal do Estado Novo não conhecia. Poeta da preocupação com o desenvolvimento sustentado e integrado das comunidades, do reconhecimento da diversidade do homem e as limitadas capacidades éticas do Poder face ao coração do homem. O poeta também da natureza, como fonte de inspiração, de um sentido humano.)

Paralelamente sigo dois caminhos
Abstracto na visão de um céu profundo.
Nem um nem outro me serve, nem aquele
Destino que se insinua
Com voz semelhante à minha. O melhor mundo
Está por descobrir. Não segue a lua
Nem o perfil da proa. Vai direito
Ao vago, incerto, misterioso
Bater das velas sinalado de oculto.

Quero-me mais dentro de mim, mais desumano
Em comunhão suprema, surto e alado
Nas aragens nocturnas que desdobram as vagas,
Chamam dorsos de peixe à tona de água
E precipitam asas na esteira da luz.
Da vida nada senão a melhoria
De um paraíso sonhado e procurado
Com ternura, coragem e espírito sereno.

Doçura luminosa de um olhar. Ameno
Brincar de almas verticais em pleno
Sol da alvorada que descerra as pálpebras.

Ruy Cinatti, «Vigília», in http://www.astormentas.com