segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Fernando Pessoa - O Assombro (2)

Isto



Dizem que finjo ou minto
Tudo que escrevo. Não.
Eu simplesmente sinto
Com a imaginação.
Não uso o coração.


Tudo o que sonho ou passo,
O que me falha ou finda,
É como outra coisa ainda.
Essa coisa é que é linda.


Por isso escrevo em meio
Do que não está ao pé,
Livre do meu enleio,
Sério do que não é.
Sentir? Sinta quem lê!


Fernando Pessoa, Obras Completas, Assírio&Alvim
Imagem, in somethingexperimental

Fernado Pessoa - O Assombro (1)



Se, depois de eu morrer...

«Se, depois de um morrer, quiserem escrever a minha
biografia,
Não há nada mais simples.
Tem só duas datas,
a da minha nascença e a da minha morte.
Entre uma e outra todos os dias são meus.


Sou fácil de definir.
Vi como um danado.
Amei as coisas sem sentimentalidade nenhuma.
Nunca tive um desejo que não pudesse realizar, porque
nunca ceguei.
Mesmo ouvir nunca foi para mim senão um acompanhamento
de ver.
Compreendi que as coisas são reais e todas diferentes umas
das outras;
Compreendi isto com os olhos, nunca com o pensamento.
Compreender isto com o pensamento seria achá-las todas
iguais.
Um dia deu-me o sono como a qualquer criança.
Fechei os olhos e dormi.
Além disso fui o único poeta da Natureza».

Alberto Caeiro, O Guardador de Rebanhos
Imagem, in resistenciasculturais.blogspot.com

Fernando Pessoa - A Biografia de um Génio



«Sinto-me nascido a cada momento para a eterna novidade do mundo» (1)


  Fazer uma biografia de um poeta é uma inutilidade, no sentido que a sua vida são as suas palavras. Por elas compôs o mundo, em sentidos de esperança e transformação, no desejo de reajustar o real ao grande sonho do homem, a sua dignidade natural. Tratando-se de Pessoa a sua poesia diz-nos muito dessa integridade do ser, de uma consciência para compreender a multiplicidade do mundo.
  A sua poesia representa a multiplicidade do homem, a sua universalidade em se descobrir capaz de realizar sonhos, olhares, caminhos. As linhas abaixo apenas traçam alguns que foram os seus gestos quotidianos de uma vida complexa de definir.
  Fernando Pessoa nasceu em Lisboa, a treze de Junho de 1888, sendo a sua mãe natural da Ilha Terceira, Açores e o seu pai era de Lisboa. Com a perda do pai em 1893, a família mudou-se para Durban, na África da Sul, na medida em que o seu padrasto era naquela cidade cônsul. Pessoa viveu em Durban de 1896 a 1905, tendo aí realizado os estudos, desde a escola primária à frequência no Ensino Superior.Em 1906 ainda se matricula no Curso Superior de Letras da Universidade de Lisboa que abandonou no ano seguinte.
  Os seus primeiros escritos datam de 1910 e a partir de 1913 participa com Almada Negreiros e Mário de Sá-Carneiro no movimento de ideias, o Modernismo. Com este movimento surgirá Orpheu, revista literária modernista, que difunde as novas ideias que já há algum tempo circulavam pela Europa.
 Em 1925, perde a sua mãe, desgosto que marcará a sua vida futura, e do qual nunca verdadeiramente recuperou. A partir de 1926 escreve  poemas que irão integrar um dos seus heterónimos, Bernardo Soraes, O Livro do Desassossego. Em 1934 publica a Mensagem.
  Morre a trinta de Novembro de 1935 devido a uma grave crise hepática, provocada pelo excesso do consumo de aguardente. Deixou-nos uma obra vastíssima, ainda por conhecer completamente e que a pós a sua morte foi sendo publicada e descoberta.


(1)  Alberto Caeiro, Guardador de Rebanhos
Imagem, in luso-poemas.net

Pessoa ou a Identidade Perdida - Profª Ana Oliveira



Quem mais do que ele era ele? Foi o que se perdeu em si mesmo, por uns copos a mais ou pelas alucinações opiáceas muito em voga naquela altura? Fosse como fosse ou porque fosse, para além do poeta imergiu o filósofo da identidade perdida que por acaso até era a sua. Nota-se em toda a obra uma profunda angústia depressiva, uma ruptura do Eu com o mundo exterior e o inevitável refúgio num mundo alucinatoriamente centrado em si mesmo. Todos os heterónimos reforçam a ideia do isolamento, num universo humano de incompreensão e vazio de atitudes reflexivas.    


Por breves instantes, talvez mais em Álvaro de Campos, nota-se um verdadeiro esforço para valorizar o Outro «És importante para ti porque só tu és importante para ti. E se és assim, ó mito, não serão os outros assim?». Mas mesmo aqui a sua escrita é decerto uma admoestação ao próprio e aos seus súbitos delírios de insatisfação. Em Alberto Caeiro, a mesma descrença nos outros continua presente «Falaram-me os homens em humanidade. Mas eu nunca vi homens nem vi humanidade. Vi vários homens assombrosamente diferentes entre si. Cada um separado do outro por um espaço sem homens.» Ricardo Reis revela um Pessoa em constante combate com Deus e com a ideia da existência de um ser superior. Para «calar» esse Deus, desenrola a sua vasta cultura clássica, criando uma tal Lídia para o guiar no percurso dessa revolta «Da verdade não quero mais que a vida; que os deuses dão vida e não verdade, nem talvez saibam qual a verdade.» Bernardo Soares é na minha perspectiva, o expoente da desilusão de Pessoa em relação tudo e todos «A mais vil de todas as necessidades - a da confidência, a da confissão é a necessidade da alma de ser exterior.
Confessa, sim; mas confessa o que não sentes. Livra a tua alma, sim, do peso dos teus segredos, dizendo-os; mas ainda bem que os segredos  que digas, nunca os tenhas tido. Mente a ti próprio antes de dizeres essa verdade. Exprimir é sempre errar. Sê consciente: exprimir seja, para ti, mentir.»



Fernando Pessoa foi e continua a ser o paradigma da identidade perdida. Muitos psicólogos e psiquiatras se debruçaram sobre a sua vasta obra, descortinando nos poemas, uma possível esquizofrenia do poeta ou a tão famosa hoje, doença bipolar. Muitos chamam-lhe génio, outros consideram-no o maior poeta português de todos os tempos e ainda outros nunca o leram. 
Gostando ou não da sua obra, a verdade é que hoje, ela é, mais actual do que nunca. Leva-nos a reflectir sobre o individualismo que caracteriza a nossa sociedade, o consumismo versus o despojamento, os centros comerciais versus o contacto com a natureza, a legitimidade das acções versus os valores éticos das mesmas e o Eu versus os Outros.


Numa sociedade em que se conjuga o verbo sempre na primeira pessoa do singular está na altura de parar e reflectir: E se és assim, ó mito, não serão os outros assim?»