terça-feira, 1 de dezembro de 2009


Tenho uma cidade inteira
no livro de bolso.


Uma esquina de segredos que eram a meias
e se escapavam num rasgão,
naquele desencontro ou noutro. Tenho
uma cidade inteira no bolso e levo escondidas
no casaco noites como aquela em que à conta de
atravessarmos as árvores e arrancarmos raízes,
trocámos os cheiros da terra por histórias
que não precisam de chão. Passámos a ter janelas
para dentro
no lugar dos botões.


Tenho uma cidade de costuras
pouco urbanas,
de buracos remendados com má caligrafia. Tenho
vírgulas gastas, travessões que ninguém quer
a pontuar os encontros nas ruas, quando
destas ruas ainda se faziam margens
para nos esperarmos uns aos outros.
Tenho uma aldeia que se ergue à altura dos olhos
e contorna rotundas com alfinetes de betão.


Tenho uma cidade no bolso
de contrabando.

Minês Castanheira, Inter-cidades, Letras e Coisas
Imagem, in Pinzelladasalmón

Stanley goes for a Drive

stanley goes for a drive from Lola Corbalán on Vimeo.

Fernando Pessoa - A universalidade do Homem

«Sê todo em cada coisa. Põe quanto és no mínimo que fazes« (1)

O apelido de Pessoa remete-nos para o teatro grego, as máscaras com que cada um enfrentava as dificuldades, os desastres a que não cediam de ultrapassar.
Pessoa transporta-nos para essa noção de diversidade, de multiplicidade do individual.
O poeta de que aqui falamos e que hoje se evoca o seu desaparecimento físico há justamente setenta e quatro anos, é uma figura marcante da cultura europeia e mundial. Representa a procura para num mundo colectivo, exprimir a voz do indivíduo, do seu olhar e das suas possibilidades.

Pessoa foi influenciado por um conjunto de circunstâncias, as suas, a do seu tempo, que lhe criou um ambiente histórico onde já se determinavam as dificuldades do Portugal Contemporâneo. A saber, O Ultimatum inglês, a decadência da monarquia, as dificuldades de afirmação da República, a instabilidade política e social, os acontecimentos trágicos à volta de Sidónio Pais. A confirmação de um regime onde a dignidade do ser não existia assegurou-lhe um Portugal cinzento, sem visão, nem futuro.
Pessoa soube criar uma poética que respondia à multiplicidade individual, oferendo-nos a dimensão moderna, universal do homem como medida de realização de um todo. Afinal o que pode ser a vida?

Neste caminho em contínua aprendizagem que dimensão nos pode transportar para uma felicidade mais próxima da respiração de cada um? Um trajecto sem emoção e sem razão, como em Alberto Caeiro, ou o modernismo tecnológico do mundo de Álvaro Campos, ou os constantes valores culturais da memória de Ricardo Reis? Afinal não são os heterónimos diferentes possibilidades de olhar para a afirmação do género humano nessa aventura que é viver?
Em todo este complexo modo de ser, Pessoa afirmou-nos que é pela força das ideias que o País poderá ter a sua única possibilidade de se afirmar no mundo desenvolvido. A Mensagem, mais do que um relato de feitos do passado transporta-nos para essa ideia de um Quinto Império em que Portugal para ser autónomo, diferente, melhor, só o pode concretizar se for autêntico, se souber assumir a sua verdadeira dimensão.

Pessoa afirmou-se modernista pela sua tentativa de transformar o futuro do País pelas ideias, pela arte, pela cultura, no sentido de cada indivíduo poder participar na construção de uma comunidade. Quantos que governaram este País, inclusivé no presente, se esqueceram deste simples princípio?
Pessoa é um criador universal, porque soube criar as diversas possibilidades do indivíduo, a sua multiplicidade onde se encontram inscritos, os valores humanos. Afinal o que poderemos ser em cada dia, reconstruindo o futuro quotidianamente, é uma das suas grandes ideias. Partindo de uma experiência individual, as suas palavras reforçam a nossa humanidade, como valor universal.


Só os homens geniais conseguem acima da espuma dos dias, verificar o movimento mais profundo e compreender como poderemos ser mais dignos como País, nas palavras de Almada. Existir é pouco para uma dimensão mais consciente da vida. A genialidade de Pessoa é essa. A de revelar a necessidade de quebrar a incerteza que reina nestas praias em sucessivas gerações. Mariano Deida afirmou há um ano, que o poeta de autopsicografia inventou a própria literatura, no sentido não de ter criado palavras novas, mas de nos revelar dimensões novas ao sentido humano.

(1) Ricardo Reis, Odes
Imagem, in f.Pessoa.com

Fernado Pessoa - O Assombro (3)


O meu olhar é nítido como um girassol. (...)

E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem...
sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras...
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do mundo...
Creio no Mundo como num malmequer,
Porque o vejo. Mas não penso nele
Porque pensar é não compreender...
O Mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo ...
Eu não tenho filosofia, tenho sentidos...
Se falo da Natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
Porque quem ama nunca sabe o que ama
Nem por que ama, nem o que é amar...

Amar é a eterna inocência,
E a única inocência é não pensar...

Fernando Pessoa, Obras Completas
Imagem, in amybates.com