«A porta da biblioteca dava para o corredor, ali onde eu fazia as minhas correrias nocturnas, cada vez mais espaçadas. Mas no silêncio da manhã, na suave penumbra, pareciam renascer do chão mágicas travessias e um aroma a cera e a madeira e a tapete aquecido pelos radiadores que tornaram a despertar em mim a magia das minhas viagens a sonhos e descobertas secretas. (...)
Com frequência, deitávamo-nos no chão, de barriga para baixo, partilhando o mesmo livro e o mesmo bocadinho de tapete. Tacitamente escolhíamos sempre o mesmo bocado, com os mesmos desenhos e cores, uma mescla de losangos e círculos azuis e castanhos. Com os dias, acabou por ser um território próprio, uma espécie de refúgio-cabana num bosque, onde entrávamos para nos transferirmos para espaços visíveis através das suas palavras, de onde saíamos para nos reincorporarmos no mundo exterior. Eu via aquele bocadinho de tapete como porta, fechadura e chave de um país só nosso. Abria-se ao entrar, fechava-se ao sair. Um segredo tão íntimo que nem sequer se podia referir em silêncio, com o livro aberto e partilhado. (...)
Semiabraçados sobre a dobra, aquela dobra do lençol que, como uma vela, ainda retém o vento das Viagens de Gulliver, ou a solidão de Robinson, ou a inquietação do jovem Jim, de a Ilha do Tesouro... E, sobretudo isso, uma fuga sem fronteiras, sem meta sequer, que nos arrastava até à Ilha de Jim ou ao País do Nunca. (...)
Era uma varanda bastante grande, com balaustrada de arenito. A parede que nos separava da varanda vizinha parecia imitar os cenários do Teatro das Crianças. Tão frágeis, tão irreais, e tão verdadeiras. (...)
Gavi declarou:
- Este é o castelo que te disse ...
Aquela janela captara um céu nosso, imenso, e nele regressámos ao território de um tapete com losangos azuis e castanhos sobre o qual ouvíamos, mais do que líamos, a voz das histórias ou dos sonhos que povoaram a nossa primeira infância.»
in, Ana Maria Matute, Paraíso Inabitado, Planeta
Imagem, Sophie Blackwall.butterflies
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